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CEFET-MG

Fatos e memórias sobre a comunidade LGBTQIA+ são revisitados

Sexta-feira, 25 de junho de 2021
No mês do orgulho, CEFET-MG fala com pesquisador sobre episódios que marcaram a história de pessoas relegadas às margens da sociedade e dos desafios para a conquista de espaço e voz

“A nossa luta, como a de tantos outros grupos minoritários, foi, é e será constante. É preciso resistir. E em um país abundante de leis que não são cumpridas, o existir sem se esconder já é resistência.” Esse raciocínio, do professor de história do CEFET-MG em Nepomuceno Eduardo Assis, ajuda a reforçar a importância do Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros, queer, intersexuais), 28 de junho.

Essa data é celebrada em todo o mundo após lutas da comunidade gay nos Estados Unidos por direitos. Para resgatar essa memória e discutir eventos que marcaram a história, como a epidemia de Aids, as paradas do orgulho LGBTQIA+, a criminalização da homofobia e transfobia no Brasil, bem como o machismo e a constituição histórica do preconceito, convidamos o doutor em História pela PUC-SP Eduardo Assis.

No doutorado, o professor do CEFET-MG investigou na tese “O homossexual respeitável: elaborações, impasses e modos de uma experiência subjetiva” diversas nuances do assunto, que deram origem a essa entrevista, realizada pela Coordenação de Jornalismo e Conteúdo (CJC).

CJC: As paradas do orgulho LGBTQIA+ remontam, historicamente, ao Movimento Homossexual Moderno, criado a partir de 1969, nos Estados Unidos. Como aconteceu esse processo e qual a importância desse movimento político para a comunidade e para os sujeitos?

Prof. Eduardo Assis: A palavra “orgulho”, associada às paradas no mundo todo, tem um sentido especial no seu contraponto: vergonha. Pois era isso o que as pessoas LGBTQIA+ sentiam naquela época em que a homossexualidade era vista como doença e como crime. E se essas pessoas LGBTQIA+ frequentassem bares gays – clandestinos, obviamente – e fossem pegas pela polícia em batidas, caso não arcassem com as extorsões, eram presas e amplamente expostas nas páginas dos jornais. Era prática corrente esses bares gays funcionarem mediante propina paga à polícia, e Stonewall Inn, em Nova Iorque, tornou-se o mais icônico deles no dia 28 de junho de 1969 pelo nível de resistência que seus frequentadores – especialmente travestis e drag-queens, meio que “apagadas” da própria história dos eventos – ofereceram às autoridades policiais após uma batida violenta. A “rebelião das bichas” em Stonewall durou dias, ganhou projeção mundial e vem sendo celebrada desde a década de 1970 como um enorme ponto de virada para a moderna história LGBTQIA+. Ao transformarem festa em política, as Marchas do Orgulho Gay impulsionaram a luta pela descriminalização e despatologização da homossexualidade, buscando ampla visibilidade e a positivação da figura do homossexual. Um exemplo disso é a apropriação da palavra “gay”, que deixa de ter um sentido difamatório para se tornar expressão de uma identidade. Todo esse movimento, obviamente, vai impactar países onde a homossexualidade não era considerada um crime, como o Brasil. E é muito interessante acompanhar como essas transformações comportamentais em torno da positivação e da afirmação política da homossexualidade gerarão novos significados, práticas e subjetividades por aqui também, principalmente através de “O Lampião da Esquina”, um jornal militante abertamente gay publicado entre 1978 e 1981, cujo papel é importantíssimo na nossa história LGBTQIA+, uma vez que as primeiras paradas gays brasileiras seriam realizadas apenas nos anos 1990.

CJC: A expressão de afetos e de sentimentos entre pessoas do mesmo sexo eram relegadas, principalmente nas cidades do interior do Brasil, a lugares escuros, em uma “atmosfera de segredo e clandestinidade”. Como essa marginalização ajuda a contar a história da expressão homoafetiva no Brasil?

Prof. Eduardo Assis: Peter Fry e Edward MacRae publicaram um texto, em 1982, explorando algumas expressões de afeto, desejo e identidade naquele Brasil de 40 anos atrás. A ideia defendida pelos autores era que as relações entre homens homossexuais pudessem ser estabelecidas entre iguais, e não em uma forma dicotômica – “bicha-bofe”, para usar o modelo dos autores. O fim dessa dicotomia, que talvez restasse no interior do país, simbolizaria melhores afetos. É um texto bastante esperançoso, a começar pelo título: “Da hierarquia à igualdade: a construção da homossexualidade no Brasil”. Mas o nome do livro, profeticamente, acabou falando mais alto com o tempo: “Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira”. Porque hoje, embora muitas coisas tenham se modificado desde então – visibilidade, direitos, identidades – há outras que, apesar de emboloradíssimas, resistem. Particularmente, aquelas envoltas pelo segredo e pela clandestinidade. E não é preciso, necessariamente, um deslocamento ao interior para encontrar a marginalização nas relações homoafetivas: uma hora em um famoso aplicativo de encontros gays é mais que suficiente. Ali, no aplicativo, você encontra o casado, o noivo, o namorado, “héteros”, “discretos”, todos “acima de qualquer suspeita”; ali você encontra aquele que detesta afeminado; e tudo precisa ser rápido e “no sigilo”. Simbolicamente, trata-se de um “lugar escuro”. Outro “lugar escuro” das grandes cidades são seus parques ou seus centros decadentes, com trilhas, cinemões, cabines e toda sorte de possibilidades para encontros anônimos e invisíveis. Os “lugares escuros” do interior, nesse sentido, são infindáveis nas grandes cidades, porque não importa aonde se vá, a homofobia e o machismo estarão lá.

CJCNas suas pesquisas, o senhor destaca que “a associação entre homossexualidade e afeminação” aparece como a associação mais poderosa feita pelos sujeitos. Como o machismo ajuda a explicar esse dado e quais estruturas contribuem para que esse comportamento seja perpetuado, dentro e fora da comunidade LGBTQIA+?

Prof. Eduardo Assis: As estruturas de gênero são poderosíssimas. Os padrões de masculinidade e feminilidade são moldados de forma dualista, excludente. O aprendizado daquela masculinidade tomada por muito tempo como modelo precisa da homofobia para produzir seus efeitos. Nessa dinâmica de exclusões, o que não é entendido como masculino está fora da masculinidade e é associado ao feminino automaticamente; como se o feminino, a feminilidade e as mulheres, fossem objeto de demérito. Tudo isso traz em si uma misoginia enorme, um pavor ao feminino que é transportado para o cerne das relações homossexuais também; nos sites e aplicativos de encontros gays, a afeminação é, raras vezes, aceita; busca-se um encontro rápido “macho x macho”; evita-se ficar com “bichinha”. O que é isso? Não é apenas uma questão de desejo, de “preferências”, o contra-argumento preferido de quem estipula as exigências mencionadas. Há muito mais por trás dessas seleções. E fica mais fácil entender esse fenômeno quando consideramos que a identidade gay emerge depois desse processo de forja do masculino, como confrontação à identidade de gênero ideal. Isso porque, no meio do processo para tornar-se homem, surge algum tipo de baliza homofóbica, inevitável a esse vir-a-ser – homem ou “viado”, que é quase outro ser nessa lógica binária. É o que justifica não ser rara a homofobia entre gays, com uma hipervalorização do ativo e uma desvalorização debochada do passivo – especialmente se for afeminado – tudo perpassado por uma espécie de hierarquização baseada na performance do gênero, para ficarmos aqui com o conceito famoso de Judith Butler.

CJCA partir da década de 1990, após a epidemia de Aids, a expressão identitária foi expandida: gays, lésbicas, transexuais, transgêneros, barbies, bears, cross-dressers, drag queens, clubbers passaram a fazer parte do vocabulário, ou seja, há mais de 30 anos. Dá para alegar preconceito, hoje em dia, por falta de informação? E o que a “ignorância” pode estar escondendo?

Prof. Eduardo Assis: A Aids foi uma bomba que ninguém esperava e, apesar das milhões de mortes que causou até hoje, há um aspecto positivo que emergiu do desastre: as pessoas foram forçadas a confrontar sexualidades e expressões identitárias que todos sabiam existir desde sempre, mas preferiam ignorar, relegar à invisibilidade ou mantê-las escondidas. No nosso contexto, houve, obviamente, um ganho de visibilidade gigante no pico da epidemia, que ocorreu em um momento muito importante para o país, quando, por exemplo, Collor abre o país economicamente aos estrangeiros. Do ponto de vista cultural, as pessoas também buscavam se afirmar, agrupando-se em “tribos”, uma gíria da época. E essas tribos vão ocupar os espaços que lhes cabem, o que resultaria na realização das primeiras paradas gays brasileiras, no começo da década de 1990 – diretamente inspiradas naquelas que já ocorriam em vários países desde os anos 1970. Então, há uma produção muito grande de informação sobre práticas e identidades afetivo-sexuais circulando no Brasil e no mundo naquela época, o que gerou uma mudança enorme de perspectiva, de comportamentos, principalmente com o ganho das ruas por meio de ações afirmativas – e aqui eu penso como ação afirmativa a própria postura do sujeito de sair às ruas sem se esconder mais. E, conforme essa mesma visibilidade avançou, os casos de agressões a homossexuais começaram a ganhar o noticiário, principalmente em São Paulo, com a atuação de gangues, como os “Carecas do ABC”, ou episódios isolados de espancamentos. Não existe coincidência aqui. Particularmente, eu não acredito em uma sociedade completamente livre de preconceitos, isso é algo utópico. Os preconceitos fazem parte da experiência social de todos nós, inclusive de quem é vítima deles, e, em linhas gerais, como pensou Agnes Heller, um preconceito é fruto de uma alternativa, de uma escolha e “cada um de nós é responsável pelos seus próprios preconceitos”, para usar uma frase da filósofa. Então, considero – principalmente na atualidade(!) – que a ignorância esconde escolhas individuais, esconde apegos ao passado, temores a renúncias de convicções, de certezas; esconde desespero; é uma busca por saídas fáceis para questões cada vez mais complexas, para voltarmos a Heller. Ou seja: a nossa luta, como a de tantos outros grupos minoritários, foi, é e será constante. É preciso resistir. E em um país abundante de leis que não são cumpridas, o existir sem  se esconder já é resistência.

Prof. Eduardo Assis

CJC: Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu enquadrar a homofobia e a transfobia como crimes, igualando a discriminação por gênero ao racismo. Historicamente, por que demorou tanto para isso acontecer? E, na sua opinião, essa medida é, de fato, eficaz na proteção de pessoas LGBTQIA+? Por quê?

Prof. Eduardo Assis: A filosofa Marilena Chauí publicou, por ocasião dos 500 anos do Brasil, um livro chamado “Brasil: mito fundador e sociedade autoritária”. É uma reflexão que abrange um pouco dessa pergunta sobre os motivos que, historicamente, estariam por trás da demora em criminalizarmos homofobia e transfobia. A obra é uma reflexão sobre o papel dos privilégios de uns sobre muitos, sobre nossas estruturas de poder e dominação, o nosso autoritarismo latente, a nossa violência, em todos os sentidos, nossa incompetência em sermos democráticos e republicanos e também expõe a nossa passividade e certa tendência à naturalização dos absurdos que ocorrem todos os dias no país. O Brasil quer ser moderno sem modernizar seu pensamento, sem se modernizar de dentro para fora. Veja, em 2018, nós tivemos, por meio das urnas, uma guinada conservadora que aprofundou no Legislativo uma composição parlamentar reacionária. Foi o triunfo da bancada BBB – bíblia, bala e boi. Essa guinada é apenas a ponta do iceberg, porque o nosso conservadorismo está entranhado nas nossas origens como país. E esse perfil altamente conservador, e (falso) moralista, dos nossos legisladores, já de longa data, obstrui discussões importantes sobre temas polêmicos e necessários ao país para preservar grupos e privilégios; esses políticos, hoje, são retrato e representantes daqueles que os elegeram, não podemos nos esquecer disso. Assim, quando o STF decide questões importantes para, não só, a população LGBTQIA+, é porque as instâncias representativas – Câmara dos Deputados e Senado – se recusaram a fazê-lo, por pressão de grupos específicos e por ignorância. Isso é absurdo, mas é o que há nas profundezas do Brasil e da política. Uma vez aprovadas essas medidas – pois aqui é importante recordarmos que o reconhecimento da união estável homoafetiva, em 2011, se deu da mesma forma, via STF –, é preciso cumpri-las. No caso das uniões estáveis, os cartórios cumprem as determinações, mas, no caso específico da homofobia e da transfobia, passamos pela polícia, uma instituição tradicionalmente homofóbica. Considero de extrema importância a existência da medida para que tenhamos, legalmente, condições de reivindicar proteção e direitos. Mas precisamos também de uma polícia que aja nesse sentido e em muitas localidades isso não acontece: registrar um boletim de ocorrência por homofobia ou transfobia é, muitas vezes, motivo de chacota, objeto de dissuasão ou as duas coisas juntas. E se já é difícil para LGBTQIA+ brancos, de classe média, fazer valer essa criminalização, imagine para LGBTQIA+ pretos, pobres, periféricos. Os marcadores da diferença (gênero, classe, etnia, origem/domicílio, escolaridade) pesam demais nessa história, para essas pessoas. Não é à toa que o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking dos países que mais matam pessoas trans no mundo. O que tem acontecido para essa estatística tenebrosa existir, uma vez que já há leis para punir suas causas? Homofobia, profundas desigualdades, autoritarismo e violências de toda ordem dialogam entre si o tempo todo, de forma naturalizada, entre nós, infelizmente. A criminalização da homofobia e da transfobia, nos mesmos termos que o racismo, reconhece as pessoas LGBTQI+ em termos constitucionais. Contudo, mesmo com recursos jurídicos válidos, urgentes, nossa luta se manterá sem fim e desistir não é opção. É uma questão de fazer valer nossa cidadania.

Coordenação de Jornalismo e Conteúdo (CJC) – SECOM/ CEFET-MG